Violências e Poéticas Urbanas


Luciano Carneiro Alves





Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã
É só música urbana

Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana

Renato Russo, “Musica Urbana 2”


A beleza e o medo caminham de mãos dadas entre sombras do passado, gritos do presente e ilusões de futuro. Caminhar pelos centros históricos de cidades centenárias brasileiras, tal qual Cuiabá, são experiências repletas de sensações conflitantes.
Durante o dia, o medo do inesperado é materializado na urgência sem sentido de motos e carros que cruzam velozmente as ruas estreitas impondo-se a qualquer pedestre que tente ter um momento contemplativo frente aos casarões que ainda resistem ao tempo. À noite, a violência urbana ganha a cara de quem vive o cotidiano da exclusão e encontra nos lugares marginais da sociedade, seus espaços para irem, virem e agirem.
Acumulando ilusões fracassadas, as cidades tentam apagar suas cicatrizes com asfalto, concreto, sonhos de progresso. Sob a efeméride de um evento ou data comemorativa, por vezes estes espaços perdem momentaneamente suas características ameaçadoras. Mas logo depois geralmente voltam a ser ainda mais excludentes e repletos de fantasmagorias da modernidade.
Na Cuiabá tricentenária, psicanalistas de rua tentam, na contramão, reconstruírem sentidos a partir do Beco do Candeeiro. Palco de violências extremas: no passado a chacina de jovens por PM’s que colocam a ordem acima da vida; hoje agonia diária de quem vê a busca pela próxima pedra de crack como seu maior sentido. Até a próxima promessa de redenção, o Beco do Candeeiro segue como uma ferida aberta e purulenta da Cuiabá que cresce sem estar em paz com seu passado.
As noites ruidosas da Praça da Mandioca são um alento para quem ainda quer crer na conciliação de séculos tão diferentes. A Cuiabá que celebra no século XXI as largas avenidas e os parques que são para poucos, parece não ver a hora destes ruídos terem o mesmo destino das muitas paredes que poderiam ser centenárias mas desapareceram para não atrapalharem o “moderno”.
De violência em violência, a música urbana segue seus compassos dissonantes. Estaríamos de olhos fechados ou anestesiados, mesmo com pupilas arregaladas? Tantas agressões alimentadas, também, pela nossa indiferença ... Certamente que não.
O fluxo contemporâneo apenas aparenta automatismo. Seus silêncios, ruídos e sons dependem de escolhas humanas – inclusive as escolhas ao priorizarmos as máquinas ou ceder a elas a tarefa de decidirem algumas coisas por nós. O sistema somos nós. E ainda somos nosso próprio lar e capazes de desatar os nós que atrapalham as reinvenções.
Várias cidades coexistem em um mesmo espaço e pela luta política, uma ou algumas prevalecem. Parte desta luta passa pela ocupação dos espaços, motivo pelo qual nossos centros históricos indicam qual a importância damos às cidades do passado que permanecem no nosso cotidiano.
Embora localizado em região central, o centro histórico tornou-se algo periférico no cotidiano de Cuiabá. E sua efetiva revitalização passa pela conexão com as demais periferias cuiabanas, para que a exclusão seja revertida em força regeneradora. É desta conexão que a potência poética tem gerado transformações e a ocupação de espaço como resistência poética fortalece lugares que já poderiam estar em ruínas.
Na adesão ao fluxo, aceitamos o frenesi efêmero que a busca do progresso pode proporcionar com as ilusórias facilidades tecnológicas. Por que respeitar o tempo que o tempo tem se posso trocar pés por rodas? Quão agradável é o calor de Cuiabá , se posso contemplá-lo do conforto de minhas bolhas refrigeradas... Obesidade, problemas respiratórios crônicos, aumento de comportamentos antissociais, crescente exclusão, não parecem ser problemas relevantes para quem ainda prefere o fluxo.
O anticlímax que tomou Cuiabá em seus 300 anos é um indicativo de que muitas pessoas estão incomodadas com o rumo dos acontecimentos. Gostamos de festejar é inegável. Porém, mesmo as tentativas de comemorações que se efetivaram mantiveram algo de constrangimento. Talvez fosse até maior se o engodo da “Times Square Cuiabana” fosse levado a efeito.
Nossa música urbana não se faz apenas de sons do progresso. Os fracassos têm sido ruidosos e os esqueletos impossíveis de serem escondidos nos armários. Os entulhos de um VLT que serviu apenas para ajudar mais dinheiro a escorrer pelo ralo; as mortes decorrentes da pressa e da intolerância inerentes ao fluxo urbano; os paletós incapazes de esconderem as atitudes nada republicanas de nossas lideranças; a fome e miséria mendigando para limpar para-brisas nos semáforos. A lista pode ser longa, de preferência do tamanho de nossa indignação e vontade de lutar.
Recusando o fluxo, ainda que parcialmente, podemos ter a oportunidade de problematizar as situações; olhar em perspectiva e buscar novas posturas e prioridades. Trocar cimento por árvores, preferir o contato com a terra à assepsia dos impermeáveis, recolocar o humano no centro das nossas relações, reconhecer no passado o legado cultural herdado porque mulheres e homens fizeram escolhas para o coletivo.
A arte cumpre importante função se tratada como experiência integrada ao viver e potencializadora de encontros. Tem sido assim no centro histórico de Cuiabá com o Slam do Capim Xeiroso e suas palavras de ordem e sensibilidade. Pode voltar a ser com o fortalecimento da Casa Silva Freire e retomada de ações como o Setembro Freire. O grito colorido de 300 sombrinhas, segue este mesmo sentido com suas sombras que passeiam na busca de um melhor alinhamento entre passado e atualidade.
Ao mobilizar o sensível, a arte nos convida a experimentar novas relações com o tempo. Necessariamente rompe o fluxo, nos propõe outras atitudes rituais – de preferência coletiva, ainda que o coletivo seja o “eu-público” e o/a artista. Experimentada no espaço aberto da cidade, a arte efetiva uma forma de participação social e de relação poética.
Cantos da capoeira reavivando janelas. Jovens concertistas usando seus violinos para enfrentarem os ruídos de motores e buzinas. Gritos que ecoam o absurdo da escravidão tentam superar a surdez coletiva que prefere ignorar o passado. Corpos em silêncio que esperam o cortejo encontrar a praça incapaz de esconder o descaso a que ela está relegada. Alegrias e cores ciganas interrompendo o reinado de carros no fluxo. Mãos dadas em ciranda, quem dera infinita, reconquistando ligações entre pessoas dominadas pela urgência.
É pelo gesto humano que o espaço, a cidade, vive ou morre. Da relação poética chega-se à subjetivação, à apropriação política dos espaços que singulariza as experiências em meio ao caos das simultaneidades do fluxo. Subjetivando, aprendemos a valorizar nosso tempo orgânico.
Se não caminharmos para o egoísmo, poderemos respeitar o tempo dos demais seres humanos com quem convivemos. O mútuo respeito é senha para a liberdade, condição sempre a ser construída e defendida em uma sociedade de consumo que nos oferece prisões em troca de seus pseudobenefícios.
Subjetivar. Sair do fluxo. Não ignorar as violências que nos atingem. Atitudes complexas, todavia necessárias para que não estejamos saturados de efemeridades. Mas sim fortes e capazes de vermos cores independentes dos tempos cinzentos.
Os modelos que ainda tentam nos impor precisam ser revistos. Poetizados, se quisermos humanizá-los.


Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar

Juliana Strassacapa, “Triste, Louca ou Má”

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