O olhar do estrangeiro e o retomar deste olhar pela prática do caminhar

Ana Claudia Vitorio de Carvalho Goes

É interessante observar como somos entorpecidos diariamente por nossas rotinas. Nossos afazeres e hábitos, nos colocam constantemente em modo automático, a fim de preservar nossa memória para novas tarefas e desafios. No entanto essa autopreservação nos custa um preço diante do qual muitas vezes não nos damos conta: o preço da desvalorização, da desafeição, que aos poucos vai se tornando indiferença, até chegar ao esquecimento.
Ao passear entre sombrinhas no dia treze de abril de dois mil e dezenove, na poética Cuiabá 300 sombrinhas, do movimento Coletivo à deriva, foi interessante notar essa linha tão tênue, que separa a admiração da indiferença, o enaltecimento da desvalorização, e o afeto do esquecimento.
Peixoto (1998), traz um conceito que se aplica perfeitamente à reflexão em questão, o conceito do “olhar do estrangeiro”. O olhar do estrangeiro é aquele que vê além da superficialidade imposta à liquidez dos olhares da sociedade contemporânea. Que traz ao observador uma experiência diferenciada. Essa experiência traz consigo a capacidade de despertar um sentimento no observador diante do que está sendo observado. De acordo com Guaraldo (2018), pode-se entender o conceito de estética como aquele que se origina de uma profunda relação entre observador e o que está sendo observado e ainda dos “sentimentos que provém desta relação”, portanto é possível afirmar que o olhar do estrangeiro é aquele que primeiro desperta a experiência estética no sujeito, experiência essa que está diretamente ligada ao sentimento humano e por isso não pode passar despercebida. A partir desse momento, o indivíduo cria um laço afetivo com aquilo que lhe despertou a emoção, podendo ser este laço afetivo algo relacionado a suas memórias, a seus conceitos culturais, suas classificações de beleza, a seu cotidiano, enfim, de alguma forma ele foi afetado por aquilo que viu.
O olhar do estrangeiro causa essa experiência diferenciada justamente por sua estranheza perante o ambiente no qual está inserido. Quando se é estrangeiro em um lugar desconhecido, tudo lhe parece novo, e toda novidade que lhe despertar a experiência estética será digna de admiração. Ao se visitar por exemplo, um centro histórico, de uma cidade qualquer, ficamos encantados com suas formas e cores, não nos incomodamos com seus possíveis desarranjos causados pelo tempo, tendo em vista que a admiração é tanta, que suprime os possíveis defeitos. Porém quando isso se dá em nosso cotidiano, ou até mesmo em nossas cidades essa admiração se esvai em meio aos incômodos gerados pela falta de estruturação adquirida através dos tempos. Até mesmo o ato de perder-se em um ambiente desconhecido, pode despertar uma experiência de admiração, como foi relatado em um compartilhamento após o evento, aonde mesmo após as manifestações, foi possível que um dos participantes, não sendo morador da cidade, tivesse várias experiências de admiração no percurso já vazio, o qual este desconhecia.
No entanto o olhar do estrangeiro é passageiro. A partir do momento em que vamos nos habituando ao local em que estamos inseridos, essa admiração do primeiro olhar vai sendo suprimida pelo que Peixoto (1998) chama de achatamento da paisagem. O achatamento da paisagem, seria como aquela vista que temos da janela de um carro em alta velocidade, onde o entorno perde seus detalhes e tudo se torna um vulto em constante movimento. Somos constantemente influenciados pelo efeito de achatamento da paisagem o qual nos causa uma atitude blasé perante a paisagem, adjetivo dado a uma atitude de indiferença, de distanciamento. Ou seja, a paisagem e os acontecimentos da paisagem não nos afetam mais.
É interessante notar que esse fenômeno de achatamento, não se manifesta apenas perante a paisagem, mas perante tudo que nos toca a emoção. A rotina é a grande responsável pelo esfriamento dos afetos diante da admiração do primeiro olhar. Pode-se notar isso perante a experiência da autora deste texto, ante o grande acervo cultural mato-grossense. Como cuiabana errante, migrante entre estados, há cinco anos chegando à Cuiabá, ao se deparar com a cultura local, ficou perplexa diante de tamanha riqueza. Todos as manifestações culturais lhe causavam admiração e tomavam-lhe um tempo quando se davam as oportunidades de encontros. Fosse um prédio antigo, fosse uma apresentação de siriri e cururu, era impossível passar por algo do tipo sem que alguns instantes de seu tempo fossem tomados para admiração e contemplação da manifestação em questão. No entanto, após o estabelecimento na cidade, a estabilidade no emprego e a rotina do dia a dia, essas coisas vão se tornando parte do cotidiano. Os prédios são engolidos pela paisagem, as danças e músicas viram ruídos misturados à buzinas e sons automotores em meio a viagens entre turnos, as danças, por vezes, viram apenas parte de propagandas com finalidade comercial, e assim o afeto se vai, e com ele a admiração do olhar do estrangeiro.
Para retomada desse olhar de admiração, é necessário retomar o andare a zonzo, este seria a prática de andar à toa, o qual proporcionaria uma nova forma de olhar a cidade. Esse olhar por sua vez, não somente vê como cria novas paisagens. O criar novas paisagens se dá a medida que o indivíduo ao caminhar por lugares desconhecidos, passa a ver lugares e ressignificar esses lugares. (CARERI, 2002 apud JACQUES, 2013)
A ressignificação dos lugares parte do princípio da formação das cidades. Segundo Careri (2002), a cidade planejada se dava como em núcleos, e nos seus entremeios surgiria uma espécie de desenho disforme que faz os contornos destes núcleos, aos quais o autor chama de arquipélago fractal, seriam os vazios urbanos. Segundo o autor, nesses vazios uma vida autônoma e paralela à cidade se organiza e se apropria do espaço.
Ao delinear os espaços vazios, Jacques (2013) baseando-se nos artistas Lygia Clark e Hélio Oiticica, os define como “vazios plenos, plenos de descobertas e possibilidades”. Ao pensar esse vazio, pode-se relacionar a forma como vemos esses espaços devido ao processo de achatamento de visão ao qual somos submetidos diariamente, e ao perderem sua relevância em meio a paisagem, esses espaços passam a ficar abandonados em meio a nossas memórias e importâncias.
É preciso então ressignificar o vazio. Jacques (2013) vai discutir através da transurbância (um caminhar atravessa e explora o espaço urbano), a ressignificação dos vazios urbanos, citando o exemplo dos terrenos baldios, “o terreno é baldio, mas no momento que decidimos fazer um piquenique ali ele se torna menos baldio e a passagem se faz”. Ainda sobre os vazios, vindo de encontro com o exemplo citado por Jacques, é importante mencionar a definição dos não-lugares, que segundo Careri (2002), são o plano de fundo sobre o qual a cidade se auto define, ou seja, é a não-cidade, ou a cidade que acontece, contraria a cidade que é planejada, porém esses não-lugares não devem ser vistos como descartáveis, mas como uma folha em branco, cheia de possibilidades para criação de situações.
Sobre as situações, Jacques (2003), define que “uma situação construída seria então um momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos” e ainda que através da construção destas situações seria possível alcançar uma “transformação revolucionaria de vida cotidiana”.
Ao vivenciar as situações proporcionadas no dia treze de abril foi possível verificar a unicidade de conceitos tão profundos abrangendo não apenas o contexto da percepção do meio urbano, mas a forma como a criação de situações proporcionou de fato essa transformação revolucionaria da vida cotidiana, através de um resgate do olhar do estrangeiro em vazios urbanos que foram ressignificados pelas intervenções de um grupo de pessoas em busca de um caminhar transformador.
Ao relatar por exemplo a situação da sombrinha perdida em espaço que antes era habitado por moradores de rua, percebe-se que um espaço vazio, ao receber uma pequena intervenção artística é capaz de alterar significativamente sua percepção perante o meio. No entanto a percepção desta sombrinha só se fez possível, graças ao caminhar com o olhar do estrangeiro, um olhar diferenciado que notou em meio aos escombros, a sombrinha. Vários caminhantes passavam pelo local, no entanto aqueles escombros estavam tão dominados pela paisagem, que foi necessário que alguém, com olhar estrangeiro, notasse aquela paisagem, se desse a experiência estética e a partir daí, de fato visse o que estava oculto naquele lugar. A partir do momento em que a sombrinha foi vista, o lugar deixou de ser ruína e virou parte da atração do evento. O não-lugar, virou lugar. Esse é o poder de transformação do olhar do estrangeiro.
Outro fato semelhante ocorre quando ao se apropriar das janelas do Misc, as pessoas puderam contemplar a ressignificação das janelas da edificação, que se tornaram palco de apresentações de músicas da cultura popular mato-grossense e manifestações artísticas afrodescendentes. Ao instalar uma colagem ao pé de um muro de uma residência abandonada, essa também se desfaz de seu significado original e, graças a um novo olhar, é tomada de novas significações trazidas pela intervenção artística. O que nos mostra que não somente o andar, mas o vivenciar e o transformar o espaço urbano, é transformar ao indivíduo, tirando-o de sua zona de dormência e trazendo-o novamente para o mundo das experiências, as quais são possíveis a medida em que o indivíduo se deixa afetar por aquilo que vê. Esse afeto é o responsável por retirar o observador de seu estado blasé e fazer com que este volte a ter o olhar do estrangeiro, e naquele momento voltamos a ficar tocados pelas atrações que nos causam admiração, naquele momento, a autora deste texto pode perceber novamente a emoção que sentia quando ainda possuía o olhar do estrangeiro, pode novamente entrar em contato com este olhar, ao vivenciar uma junção das intervenções artísticas que tanto lhe tocam, junto ao caminhar a zonzo. Naquele momento pode-se entender que é preciso ter tempo para ver.

Referências Bibliográficas

CARERI, Francesco.Walkscapes, o caminhar como prática estética. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 2013.
JACQUES, Paola, B. (Org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade / Internacional situacionista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003 .
JACQUES, Paola, B. O grande jogo do caminhar. São Paulo, Editora G. Gili, 2013.

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