Cuiabá 300 anos, sombras e arte.
Ivoneides Amaral
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[1] Mestre no Programa de Pós-Graduação em Culturas Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso.
Cuiabá, a cidade que
completa seus 300 anos, conhecida por muitos como cidade verde, em sua rotina
segue o fluxo por caminhos acelerados com hora marcada, e na maioria das vezes seus
transeuntes não observam a paisagem que tem ao redor, tornou-se um centro
urbano vazio, quente e com poucas árvores, é um enorme esforço buscar na
memória e relembrar a arte que foi tecida na construção da sua identidade. Pensando
nesse contexto de reflexões sobre a cidade e seus espaços, nos aproximamos do
pensamento de Gomes (2017), ao relatar que o perder-se pela cidade consistia
numa ação fugaz, um instante imediato para ser vivido no presente. O encontro
das sombrinhas e dos sombreiros, pensado nessa prática do perder-se em um
universo imaginário, torna-se uma arte coletiva que luta por uma imagem
determinada e estável e possui virtudes que buscam possibilidades de um percurso criativo
pelas ruas de Cuiabá.
Finalmente chegou o dia das
experimentações, sem saber ao certo suas
causas e efeitos, os sombreiros estavam dispostos e com expectativas de
partilharem algo novo, através dos diferentes contatos, traziam nas mãos as
sombrinhas, o instrumento da criação e do movimento, em suas mais diversas
variações de cores, formas e tamanhos, nos propiciou encontro, trajeto e arte.
Fonte: Atrações temporárias. Em 13/04/2019.
Fonte: Atrações temporárias. Em 13/04/2019.
O grupo dos sombreiros começa a caminhada contra o fluxo da cidade, refletindo e
dialogando sobre a realidade que os rodeiam. “Observa-se, os limites espaciais
se mostram menos rígidos. Entre interior e exterior, entre dentro e fora, entre
privado e público, entre aqui e lá”. (Jacques, 2013). Enquanto passeiam, os
sombreiros provocam o desvio e, no caminho, ocupam um lugar entre o cotidiano e
a arte, despertando um olhar diferente sobre a cidade. Ao descer a rua na
contramão, somos acolhidos ao toque dos tambores que produziam uma arte sonora,
com som de liberdade, provocando fascínio e reflexão sobre as batalhas
enfrentadas para estarmos partilhando esse universo ficcional.
Os sombreiros na caminhada fértil,
criando realidades complementares para o movimento da cidade, realizam no
trajeto um ensaio com percurso livre. Mesmo em meio a
rupturas e mudanças no cotidiano urbano, a maioria das pessoas tem dificuldade
em parar, apreciar, desvendar e se entregar à possibilidade do novo, que é
transitório, performático e coexiste com a realidade. Os sombreiros ofertaram à cidade, como
presente aos seus 300 anos, sombras, artes e performances de maneira gratuita e
especial.
De acordo com Glusberg (1987) “[...] a performance não é
estática, ou seja, ela pode ocorrer num espaço fechado ou livre, num contínuo
de cenas que promovem uma quantidade cada vez maior de proximidade e
compreensão”. No desenvolvimento da performance os espaços são ampliados com
direções e utilizações novas entre público e atores, e os agrupamentos sociais reconstituem-se
em transformação.
Fonte: Atrações
temporárias. Em 13/04/2019.
Dentre os espaços possíveis
e vazios que tecem o centro urbano de Cuiabá, a praça com sua estrutura
própria, por muito tempo foi um local provável de encontros, afetos e
desafetos. Tornou-se tão só, tão triste, não se encaixa no contexto
contemporâneo, construído na velocidade, na tecnologia e na qualidade produtiva
que nos distanciam da cidade. Na sua identidade e narrativas a praça está para
o ócio, para o pensante, para o momento, é um lugar de histórias contadas em
uma cidade possível. DaMatta (1997b, p. 99) ressalta que na praça “[...] as
pessoas podem rir e brincar, ser sério e legal, e ainda ser neutro e renunciar
em a favor dos pobres, oprimidos e marginais, dos santos, de Deus e da igreja”
Na realidade atual
de Cuiabá a maioria das praças tornaram-se apenas um vão, um espaço entre as
ruas e as casas sem muitos significados, sem contos, sem histórias, sem
pessoas, um estranho vazio no centro. A realidade observada por Bakhtin retrata (apud BRAIT,
2006), a praça pública sempre foi um espaço comum, o lugar onde o povo assume a
voz que canta. É um ambiente não segmentado aberto à cotidianidade e ao teatro,
sem distinção de atores e espectadores.
Fonte:
Atrações temporárias. Em 13/04/2019.
O encontro na praça foi
algo diferente, revitalizada em seu papel de representação que efetivamente
ocupar seu lugar mais elevado no contexto da experiencia moderna, tornou-se um
local de demora, não só de passagem. Foi possível receber afetos, aplausos,
músicas, danças e trocas, tornando-se um momento de ocupação, momento de arte. Estar
na praça, possibilitou experimentações. As sombrinhas causadoras do desvio
tiveram um momento de descanso, permitindo-se descobrir que há ali linhas
próprias e fascinantes, pois, na praça ainda é um dos poucos lugares que
encontramos sombras de árvores, canto dos pássaros, o perfume das flores e a
liberdade do vento.
No entanto mesmo sendo
esse local de lazer e deslocamento dos conflitos cotidianos, é certo que as
tensões urbanas continuam seus processos e observamos em um súbito desvio de
percurso tecendo um universo entre o real e o imaginário acontece um acidente,
uma colisão entre dois carros, vivenciados pelas sobrinhas em seus desvios, sem
mortos e feridos, um jovem rapaz grita, e agora quem vai pagar?
Essa frase ecoou nesses
300 anos de festa, histórias e transformações da cidade, quem vai pagar pelas
tribos dizimadas, pelos negros humilhados e escravizados, pelos rios que foram
cobertos e poluídos impedidos de passar no centro da cidade. Quem paga pelo
abandono do morro da luz, pelos antigos casarões demolidos e abandonados, pela
vida dos meninos que foram chacinados no beco do candeeiro, quem paga pela vida
no homem que perdeu seus familiares e sua história. Qual o valor da
verdade vivenciada pelo jovem negro que em frente à igreja N. S. do Rosário e
capela de São Benedito, localizada no centro de Cuiabá, grita e expressa toda
sua dor das perdas que viveu, das discriminações que sofre, das barreiras que
enfrenta e afirma, a vida do negro vale menos.
Na reconstrução do olhar,
a praça e os sombreiros veem passar tantas dívidas sociais, culturais,
políticas e econômicas, e a pergunta continua ecoando, e agora quem vai pagar? Reflexões possibilitadas
pela arte e pela ocupação urbana, conjeturadas nas ações
performáticas que parabenizam a cidade por seus 300 anos. Ações que se
desdobram em meio às comemorações pois, atualmente submetida ao ritmo da vida
moderna, não há tempo para investigações profundas.
Vou pegar minha sobrinha e ir para
praça, viver o pouco tempo que me resta, pois, 300 anos são de histórias, memórias
e conhecimento, nenhum lugar melhor que a praça para ver e constatar tantas
mudanças.
Referencias:
BRAIT, Beth. Análise e teoria do
discurso. BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin:
outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 9-32.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania,
mulher e morte no Brasil. 5. ed. São Paulo: Racco, 1997b.
GOMES, Priscila. Por uma estética
radiante: deslocamento, experiência e cidade. Estudos Avançados, 31, 2017.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
JACQUES, Paola Berenstein. O grande
jogo do caminhar. Laboratório Urbano. Universidade Federal da Bahia, 2013.
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