CALIGRAFIA DE DERIVAS : 300 anos de imagens memórias.
Caroline de Oliveira
Santos Araújo[1]
Resumo:
Palavras Chaves: Caminhar, deriva, memória, imagens, cidade.
1. A IDENTIDADE REGIONAL E
O METABOLISMO URBANO.
A dinâmica da Sociedade parece estar
sempre em ruptura com o passado. Nora ( 1993) aponta que vivemos o momento em
que as sociedades modernas, no limite de sua transformação da memória em
história, a eliminou quase por completo; (...) “é o momento preciso onde
desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade de uma memória,
para só viver sob o olhar de uma história reconstituída”[1]. A cidade de Cuiabá, capital do estado
de Mato Grosso, situada na região central do continente sul –americano, e habitada inicialmente por diversas
sociedades indígenas, depois pelos europeus e negros, tem geograficamente uma
posição limítrofe com a área de fronteira dos domínios da américa
espanhola e portuguesa; o que garante a
ela uma rica miscigenação social e cultural proveniente dos atravessamentos
naturais que coexistem nesses espaços
fronteiriços. O arraial e depois Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá foi a configuração espacial territorial mais
avançada até 1734, quando foram descobertas as minas na região do Guaporé. Esta
espacialidade territorial foi palco das mais variadas estratégias
geopolíticas de ocupação, em que todas, de certa forma visavam garantir a
soberania da produção aurífera da região, e posteriormente, como uma espécie de status de cidade “pouso”
para as expedições e viagens que ao longo desses seus 300 anos de existência fizeram
de Cuiabá rota para desbravar as terras mais ao norte ou extremo oeste
brasileiro. De certa maneira, o processo
de constituição dessa nova territorialidade ao longo dos anos, foi
esquadrinhado progressivamente, a medida que novos fluxos migratórios iam afetando a paisagem urbana dessa região. A
noção de região que orienta esta reflexão, se referencia nas interpretações de
Pierre Bourdieu (2002; 107-132), que aponta que a divisão regional surgiu
simbolicamente e foi sendo reconhecido e legitimado a posteriori. O que nos
leva a compreender que a delimitação regional é estabelecida por quem nela vive
e passa a compor o imaginário dos que a aquela espacialidade se referem.
Orgânica e viva . A história do surgimento de Cuiabá e de sua ascensão a
cidade, e posteriori capital de Mato
Grosso, tem arraigada na sua constituição de certa maneira uma busca pela
identidade da região a qual ele esta encrustada. Se fizermos um exercício de
analepse, são 300 anos de frames para tentarmos compreender o quebra cabeça
profundo do metabolismo urbano desse organismo cidade.
De
uma espacialidade de mina aurífera, a abertura de vias para escoar a produção,
e também proporcionar o trafego dos transeuntes que aqui existiam, a construção
dos grandes casarões, igrejas, aberturas de mais ruas e rotas de ir e vir, pavimentação de córregos, Cuiabá foi sendo
“construída” pelas pessoas que aqui habitavam da maneira como elas julgavam
correto a época, ou, como queriam que fossem vistas pelos de fora. Progresso e
modernidade imperavam. Afastamento do bucolismo do oeste onde territorialmente
no imaginário nacional o organismo cidade Cuiabá se encontrava. Virou-se as
costa para o rio que dá nome a cidade. Virou-se as costa para as minas que
fizeram o arraial elevar-se ao status de cidade. Sua história foi sendo
reconstituída a cada mudança sofrida, principalmente na territorialidade
central. Nunca foi de fato planejada e muito menos pensada para acolher aos
seus cidadãos. Numa espécie de efeito contrário, a urbanização de Cuiabá foi
afastando cada vez mais os cidadãos do centro de onde a cidade surgiu,
relegando aquela espacialidade a uma memória de passados que se expressam em
escombros dos casarões centenários que resistem ao incomensurável tempo. A memória aqui opera como fiadora da história
desse território, “tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização de
seu desaparecimento no fogo da história. A necessidade de memória é uma
necessidade da história”[2].
Sobre a amalgama de memória e história Foucault apontava que:
“a história contínua é o correlato indispensável à função
fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser
devolvido; a certeza de que o tempo nada dispensará sem reconstituí-lo em uma
unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da
consciência histórica - , se apropriar, novamente de todas essas coisas
mantidas a distância pela diferença, restaurar o seu domínio sobre elas e
encontrar o que se pode chamar de morada. ( FOUCAULT, 1972, p. 15)
Identidade
regional é um produto da construção humana social. Mas qual a identidade de uma
territorialidade tão contaminada por
diferentes expressões culturais que coexistem, mas num futuro não distantes,
que subjugam? Quais símbolos culturais cuiabanos tornaram-se estandartes dessa
identidade regional numa tentativa de preservar a memória desse organismo cidade?
Para Bourdieu, o regionalismo é um movimento de defesa da identidade regional
construída e sua eficácia está relacionada ao poder de quem a enuncia.
Realiza-se através de lutas simbólicas contra regiões que se colocam como
dominantes. As lutas regionais, por se relacionarem à identidade, adquirem
expressiva força mobilizadora. Nelas, o que está em jogo é o poder de criar e
recriar identidades, ou seja, uma luta também simbólica que visa se apropriar
de vantagens simbólicas.
Quando da
construção da ação de intervenção proposta pela disciplina, o pensamento sobre
esse simbolismo da identidade regional, por mais que não fora algo levantado em
voz alta, foi um denominador silencioso na escolha da ação proposta: Caminhar a
deriva num percurso que circunda a mina aurífera que institui Cuiabá na
categoria de cidade. Chamar a atenção para o centro histórico desse organismo
cidade cujo metabolismo urbano pulsa frente as feridas que foram conferidas ano
após ano nessa espacialidade em questão.
2. O FLUXO DAS IMAGENS MEMÓRIAS.
O conceito de
intervenção é empregado no campo das
artes, com múltiplos sentidos. Como prática artística no espaço urbano, a
intervenção pode ser considerada uma vertente de arte urbana, ambiental ou
pública, direcionada a interferir sobre uma dada situação para promover alguma
transformação ou reação, no plano físico, intelectual ou sensorial [3]. Neste ensaio assumimos ação proposta como uma Intervenção Urbana figurando como uma
manifestação artística, que deveria ser realizada em áreas
centrais da cidade e consistindo em uma interação
com o entorno visando colocar em questão as percepções acerca do mesmo.
Entendemos esse organismo cidade enquanto um sistema complexo regulado de certa
maneira pela produção, pelas relações formalizadas de trabalho e de família,
pelos valores de consumo impulsionados atualmente pelas mídias, pelas
burocracias que impedem ou aceleram os fluxos
das coisas. Contudo, esse fluxo não é algo palatável. Ele perambula na umbra
de temporalidades. Entre espaços vazios, entre lugares, entre memórias. Em 300
anos Cuiabá viveu ciclos de expansão e estagnação. Viveu progresso e viveu
depressão. O passado de riqueza da corrida do ouro, se mistura com o
apressamento indígena, o subjugo negro, a defesa das linhas de fronteira, a
tentativa de modernização, a ascensão agrícola. E mesmo assim, ao passar os
olhos hoje pela paisagem urbana de Cuiabá, não encontramos referencias a esses
passados de maneira clara. Justamente porque, devido ao volume de informação
recebido hoje, o olhar cotidiano esta cansado e quase que velado a apenas um
prisma de visão dessas espacialidades. Sendo assim, uma ação que visasse chamar
o olhar para deslocar-se em busca de um reencontro a lugares de memórias[4]; em pleno mês de comemoração do aniversário da cidade nos
mostra que essa “ação de atravessar o
espaço nasce da necessidade natural de se deslocar a fim de encontrar alimentos
e informações indispensáveis à sobrevivência”[5] da memória, e consequentemente, da imagem dentro desse
espaço tempo. Dessa forma, a proposta de caminhar pelo centro histórico de
Cuiabá, tornou-se latente. Caminhar é uma abertura de mundo”[6]. É viver um corpo. É a possibilidade de registrar pelas
lentes humanas o nascimento de uma imagem efêmera, e tela em loop eterno entre
as partículas iluminadas da memória corrente. Passamos a tentar compreender
quais as imagens que ganharam vida e fluxo
nessa urbe em questão.
A palavra fluxo aqui
é extraída do conceito de HANNERZ[7] enquanto dimensão temporal, cultura como processo[8]. O fluxo mantem a
cultura em movimento, as pessoas enquanto atores e rede de atores, a historia,
costume e tradições em transito e atravessamentos constantes. Quais fluxos
surgiriam de um simples caminhar? O trajeto proposto, incorporava uma boa parte
do marco zero de Cuiabá, circundando a geoposição de outrora das Minas de
lavras de Sutil, onde hoje fica a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e a capela
de São benedito. Partindo do local conhecido como Praça da mandioca,
perambulando pelas ruas estreitas do centro histórico, fitando as ranhuras
históricas dos casarões que ainda se sustentam naquela espacialidade, um
cortejo, cuja meta era obter 300 sombrinhas, foi quebrando a rotina citadina de
um sábado de abril. Em meio aos olhares externos da ação, que, foram chocados a
entender o que aquelas sombrinhas todas juntas estão chamando a fazer, o
cortejo foi fazendo uma espécie de viagem a pé pela paisagem urbana. “A
Caminhada condicionava o olhar e o olhar condicionava a caminhada, e parecia
que apenas os pés eram capazes de olhar” (SMITHSON). Essa viagem foi uma volta
ao tempo de lugares de memórias que nesse trajeto forma cristalizando. Mesmo
tendo um ponto de partida e um retorno, o caminhar proposto namorava a técnica
da deriva, que caracteriza-se pela
passagem rápida por ambiências variadas[9] deixando-se levar,
mas tendo domínio das variações psicogeográficas, pelo conhecimento prévio da
rota. Derivando, fomos rasgando as
ruas dessa espacialidade, chamando atenção, proporcionando espanto e
curiosidade. Durante todo percurso um questionamento martelava a minha mente:
Esses espaços que atravessamos nessa deriva, de certa maneira são caligrafias
que vão sendo tecidas por essa caminhar, e cada uma delas carrega um peso de
ancestralidade das imagens memórias que foram nascendo e morrendo nessa
paisagem urbana.
Esse pensamento tornava-se nítido a medida que os espaços
atravessados mostravam uma cidade cujas calçadas não são próprias para os
pedestres. Onde os casarões antigos são eminentes perigos aos cidadãos, onde
ruínas de construções se fundem com a vegetação e o lixo, e coexistem em meio
aos transito e o ir e vir citadino. E a cada passo, o olhar que já conhecida
aqueles bolsões, ia abrindo na memória o corpo de memórias que eu não
vivenciei, mas li, nos livros de história que retratavam a constituição de
Cuiabá. Foi embebida nessa sensação, que ao chegar na Igreja de Nossa Senhora
do Rosário e a capela de São Benedito e me deparar com a dramaturgia proposta
pelo aluno Éverton Britto, um tiro em minha mente pesou. Em uma fagulha de
tempo, Éverton reconfigurou aquela espacialidade e trouxe para si toda a
ancestralidade que ali, simbolicamente reverbera, em um discurso atual,
pujante, doido. Fiquei em silencio. Fiquei tocada. Fiquei em choque. A imagem
ali produzida, nos permite compreender que nesses 300 anos, Cuiabá, nunca foi
sentida, ouvida. Ela foi sistematicamente calada, esquecida.
Referencias
bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólica. Tradução de Fernando Tomaz. 5Ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BRETON, David Le. Elogio Del Caminhar. Ed. Siruela, Spain, 2017.p, 15.
DEBORD, Guy – Ernest IS, Nº 2, dezembro de 1958.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Baeta Neves. 5a edição. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, p. 15.
HANNERZ, Ulf. Fluxos,
fronteiras, Hibridos: Palavras – Chave da Antropologia Transnacional. Mana
3 (1):7-39, 1997.
HANNERZ, Ulf. Cultural Complexity. New York: Columbia
University Press, 1992.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática
dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC – SP. Nº 10, 1993.
REY, Sandra. Caminhar: Experiencia estética, desdobramento digital.
Revista Porto Arte: Porto Alegre, V.17, Nº 29, Novembro/2010
[1] NORA, Pierre. Entre
Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo:
PUC – SP. Nº 10. 1993, p. 12.
[3]http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=8882
– acessado em 17 de março de 2012 as 22:35
[5] REY,
Sandra. Caminhar: Experiencia estética, desdobramento digital. Revista Porto
Arte: Porto Alegre, V.17, Nº 29, Novembro/2010
[7] HANNERZ, Ulf. Fluxos,
fronteiras, Hibridos: Palavras – Chave da Antropologia Transnacional. Mana 3 (1):7-39, 1997.
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