Caminhar pela cidade como intervenção de nós mesmos - "Cuiabá 300 sombrinhas" no contexto da Arte Contemporânea


Maria Regiane Barrozo
regianemusique@gmail.com


A pergunta: O que é arte contemporânea(?) pressionou de tal forma apenas uma fala com todo seu contexto argumentativo estético e até poético, que sofre hoje, do problema da interpretação alheia. Não o outro como alheio, mas o alheio de si mesmo. Alheísmo de nós mesmos quando não conseguimos responder profundamente a pergunta tão comumente diagnosticada nos dias atuais de nossa cultura já exposta às artes de rua e nas ruas: O que são as artes contemporâneas(?).
Essa determinação aqui escolhida, trazendo arte de/nas ruas como um estilo dentro do gênero arte contemporânea, não limita o caráter tão pouco sugere definições, se trata apenas de aproximação com o objeto proposto para essa escrita, dentro de uma arte que apresenta atividades no deslocamento do corpo por espaços na cidade e com a cidade.
Retomando a primeira pergunta e ao nosso alheísmo, diante de tantas respostas intelectuais já dadas à questão, uma saída talvez seja o deslocamento da pergunta. Ao invés de procurar respostas, fazer uma outra pergunta: Por que arte contemporânea desse modo? ou ainda: Por que arte performática pela cidade? e para dar continuidade ao texto, a pergunta: O que essa manifestação e/ou prática artística está dizendo sobre nós mesmos enquanto sociedade?
A intervenção urbana "Cuiabá 300 sombrinhas", que aconteceu no dia 13 de abril de 2019 em parte do centro histórico da capital, recebeu inspirações comemorativas devido ao aniversário de 300 anos da cidade, comemorado no mesmo mês, e teve a caminhada e a experiência artística com lugares e com pessoas nesses lugares, a atitude central da mobilização. Essa ação provocou o questionamento apresentado nesse texto, o qual não só traz uma pergunta como também uma inicial reflexão a respeito de uma outra sensibilidade artística a partir das experiências vividas e observadas durante a mobilização, ou, durante a intervenção por uma "cidade possível" (MARITHÊ - PPGECCO/FCA/UFMT).
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No percurso da caminhada "Cuiabá 300 sombrinhas", alguns acontecimentos foram programados enquanto outros, como já se espera de uma intervenção pela cidade, não estavam roteirizados. Essa dinâmica que privilegia os acontecimentos em sua esfera de realidade cotidiana, oferece o contexto como objeto para essa atividade artística. Contudo, arte contextual e realidade são colocadas em confronto equivalente por Paul Ardenne (2002) por uma questão elementar na arte contemporânea, que se trata de uma individualidade. O produto do artista é sua realidade de vida, é sua opinião, é o seu entendimento particular sobre a sociedade a partir do seu contexto social. A arte contextual é, dessa forma, ampla e múltipla de realidades diferentes. Nesse sentido, "o artista não inventa [ou] cria [...] o artista conecta e ativa" (ARDENNE, 2002, pp. 32, 41). Logo, temos aqui dois sintomas: conexão e ativação. 
Não se vai às ruas ou se caminha pela cidade observando e fazendo ações que hoje se nomeia Arte apenas porque é interessante, diferente ou belo. Há uma razão de sentido que preenche em algum nível a compreensão social vivida individual e/ou coletivamente. Há um sentido que leva à esse modelo mobilizador e interativo de fazer arte. Aí o contexto social e histórico faz todo sentido em Bourriaud, quando nos oferece os sintomas culturais da sociedade contemporânea traduzidos na arte atual. Priscyla Gomes (2017) destaca uma fala de Bourriaud a respeito, especificamente, da arte que se manifesta por meio da caminhada: "O surgimento do trajeto como princípio de composição tem sua fonte em um conjunto de fatos ligados a uma sociedade de nosso ambiente visual: a globalização, a banalização do turismo, assim como a irrupção da tela do computador na vida cotidiana [...] com a explosão da internet" (Bourriaud, 2011, p. 115. In: GOMES, 2017, p. 150).
Nada está fora de contexto. O cotidiano do momento presente se conecta automaticamente como a natureza de nossas personalidades. Onde há conexão também há uma interferência entre elementos, ou seja, ativa-se uns aos outros em graus e níveis essencialmente particulares. 
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Participar da caminhada "Cuiabá 300 sombrinhas" e observar os eventos que ocorriam no seu interior e também os que se exteriorizavam em sua decorrência, possibilitou pensar naquele lugar de fala, na necessidade daquela manifestação e dos eventos artísticos ao longo do trajeto. A situação da cidade tematizou as intervenções, e não somente pelo efeito do seu aniversário, mas pela necessidade que move o conteúdo da arte contemporânea especialmente a partir da segunda metade do século XX: questões sociais e políticas sem objeto estético vinculado ao caráter da arte tradicional.
Várias manifestações artísticas ocorrendo simultaneamente em um evento se une ao aspecto já comum das artes contemporâneas. A caminhada em questão não se furtou a esse gênero, urdindo diferentes ações artísticas na significativa concretude da distribuição e plantação de sementes arvoríferas. Com efeito, um olhar um pouco mais crítico impele à uma inflexão. A caminhada das 300 sombrinhas uniu a intervenção, ou seja, o interagir em grupo por ruas da cidade - dentre outros olhares sobre nosso próprio ambiente de vida - com a performance de artistas atuando e executando suas diferentes manifestações artísticas.
Essas duas integrações não são necessariamente usuais para definir a arte-trajeto ou a arte de caminhar pela cidade, no entanto, esse encontro diferenciou o evento na cidade de Cuiabá e leva a sugerir um novo sintoma para se somar ao diagnóstico de uma contemporaneidade artística. Quando música, teatro, performance, poesia, intervenção, dança e objetos acontecem juntos e fazendo parte do deslocamento da arte de caminhar pela cidade, as conexões estão se ampliando e as ativações decorrentes desta, apontam para uma nova, talvez inédita, categoria na manifestação da arte-trajeto. É sintoma de uma necessidade de também se deslocar para ter outro significado, o significado social que cada indivíduo carrega a partir de sua realidade de vida (ARDENNE, 2002; BOURRIAUD, 2011 In: GOMES, 2017).
Essa necessidade é espelho. Se há um conforto em realizar arte dessa forma, indicia o contexto que é absorvido no tempo histórico presente. A essa nova estética, Bourriaud chamou de Radicante, e, relacionou com "figuras dominantes da cultura contemporânea - o imigrante, o exilado, o turista e o andarilho [...]" (GOMES, 2017, p. 152). Complemento essas palavras apontando uma observação a ser analisada futuramente, pois o presente é embrionário para o assunto: se trata de um agravamento das dinâmicas de influências para uma arte visual e de deslocamento na atualidade, a partir de um fenômeno que venho chamando de diáspora dos refugiados do século XXI, quando se intensifica e se agrava comercial e politicamente essa realidade. A realidade do refúgio possui um percurso do devir. Cruzando artes de diferentes culturas, é lúcido pensar na possibilidade de nova(s) formas de artes com reinvenções em razão das adaptações e sobrevivência humana e cultural. Mas isso é algo a ser observado ao longo de décadas posteriores.   
Considerando portanto, essa realidade contemporânea, qual seria a manifestação artística capaz de atender a esse momento? ou melhor, quais aspectos artísticos conseguem revelar nossas necessidades, nossas situações diante de acontecimentos globais que nos conectam e ativam a todos? Precisa, primeiramente, ser rápido e dinâmico na velocidade das informações e comunicações nas quais vivemos. Outro elemento fundamental de nossa sociedade vigente é a inovação, a efemeridade, que a arte precisa alcançar para ser capturada em algum instante - ou não se deixar capturar.
Por esse motivo, a arte que se desloca e que tem como objeto o que vai ser encontrado a frente, independente do dia, local, horário, porque o objeto não se cria, se conecta, uma vez que este objeto é o próprio indivíduo em valorização de sua realidade de vida, é a arte que sedia nossas impressões e expressões coletivas e individuais.
Ao considerar um diferencial na caminhada "Cuiabá 300 sombrinhas" por unir diferentes manifestações artísticas durante o trajeto como música, poesia, performance entre outros - quando o próprio ato de caminhar e interferir na cidade de algum modo já contempla essa forma de fazer arte - observo uma nova possibilidade de realização desta, onde a livre presença das variadas elaborações e estéticas artísticas podem, ao seu modo, dizer da sua nevralgia silenciosa, e que só encontra analgésico em uma manifestação que utiliza suportes e mecanismos iguais aos que somos imersos em nosso cotidiano: a velocidade, a imensa quantidade de informações, a fluidez, a reposição quase instantânea do que já foi visto e lido … a necessidade da situação vivida aqui e agora. Ou seja, quando as manifestações artísticas, citadas, estão presentes na arte-trajeto/caminhar, já é alterado seu procedimento padrão de execução ao mesmo tempo em que recebe outros elementos performáticos, porque precisa apreender o fluxo dinâmico da cultura contemporânea, privilegiando nas artes uma estética da experiência social, e não mais a estética do rigor teórico ou do gosto. 
Em que medida essa arte diz a nosso respeito e se torna nosso espelho? Me parece que essa medida é imensa.



Referências bibliográficas

ARDENNE, Paul. Un arte contextual. Creación artística en medio urbano, en situación, de intervención, de participación. Murcia, Espanha. Cendeac, editora Azarbe, 2002.
GOMES, Priscyla. Por uma estética radicante: deslocamento, experiência e cidade. Estud. av. vol.31 no.91, São Paulo Sep./Dec. 2017. pp. 143-156.



     




 




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