Caminhar como pausa
Natália Apolinário
O caminhar pode se
classificar como prática estética, resistência política, errância, escape, foi
o ato pelo qual o ser humano começou a se movimentar na construção da história
entre os povos nômades, é o meio que provoca movimentos, mutações, inconstâncias
dentro das cidades. Tece a poética urbana através da releitura de espaços, mais
profundo ainda, da interpretação do subjetivo no contexto da cidade.
Atualmente, no fluxo e na ausência de tempo que a contemporaneidade exige dessa
sociedade de consumo, dessa geração globalizada em termos de rede, mas
encaixotada no quesito convivência e troca, caminhar se torna um protesto, um
ir-contra-o-fluxo, um estar inteiro ao momento presente, um paradoxo (é uma
pausa advinda de um movimento consciente). Entretanto, principalmente, é uma
meditação de si mesmo em comunhão com o entorno, com a paisagem, com a
realidade.
Le Brethon mencionou em seu
livro que no ato de caminhar “Todo sentimento de duração se evapora: o
caminhante se acomoda em um tempo desacelerado até a medida do corpo e do
desejo”, abre, ainda, o conceito de tempo “O relógio é cósmico, é o da
natureza, o do corpo, e não o da cultura, com o seu meticuloso armazenamento do
tempo”. Não surpreende, assim, que se utilizando do simbolismo inerente ao ato,
a maioria dos movimentos, manifestações, protestos, e intervenções, sejam
realizados através do ato de caminhar pela cidade, pelas ruas, em grupos de
grande e pequeno porte, desde que o objetivo de ocupar o espaço seja cumprido.
Encontra-se nessa locomoção
urbana o mecanismo perfeito de leitura, releitura ou ressignificação de
espaços, através da intenção de se lançar um olhar sob a nova ótica de
ocupações e vivências, o “deixar-se levar” pela psicogeografia do espaço.
Utilizando-se do viés da Teoria da Deriva, que o movimento artístico, Cuiabá
300 sombrinhas se apoiou, e desenvolveu uma série de intervenções artísticas e
políticas, ao longo de um percurso, no centro histórico da capital de Mato
Grosso. A fim de fazer um passeio à memória de Cuiabá, evidenciar espaços
esquecidos e suas histórias, destacar seu povo e suas características
culturais, tanto local quanto nacionalmente, proporcionar um suspiro, assim
como, trazer uma crítica, ser uma forma de dizer não a espetacularização das
cidades atuais, e propiciar a trocar entre as pessoas que se permitiram
participar dessa vivência.
A Teoria da Deriva, segundo o livro Apologia da Deriva, organizado por Paola Bergstein Jacques, traz em sua concepção o seguinte pensamento,
De forma que, a intervenção se trata de um caminhar que vai muito além de um gesto despropositado, ainda que, de uma perspectiva mais ampla, é possível se abrir a experiência de perambular pela cidade sem objetivos, encontrando pelo caminho novos ou antigos pontos de interesse. Entretanto, Cuiabá 300 sombrinhas se valeu da manifestação artística e da ocupação do espaço urbano para, além de valorizar aspectos da cidade, também, fazer críticas construtivas ao seu status atual.
A Teoria da Deriva, segundo o livro Apologia da Deriva, organizado por Paola Bergstein Jacques, traz em sua concepção o seguinte pensamento,
O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagens e passeio [...] A parte aleatória não é tão determinante quanto se imagina: na perspectiva da deriva, existe um relevo psicogeográfico das cidades, com correntes constantes, pontos fixos e tubilhões que tornam muito inóspitas a entrada ou a saída de certas zonas. (DEBORD, Guy-Ernest, 1958)
O símbolo do movimento, uma
sombrinha, por si só já se utiliza de uma desconstrução de sombra, fazendo
analogia as sombras das árvores que não fazem jus ao título de Cidade-Verde que
recebe, já que há um déficit grande de arborização em uma cidade na qual o
clima é conhecido por ser quente e seco, além das várias ilhas de calor. Martha
Machado Campos, pontua sobre a arte dentro das dinâmicas urbanas, “Os
procedimentos de intervenção da arte e da arquitetura da cidade contemporânea
são potencialmente mecanismos da exploração das fronteiras entre campos disciplinares
cada vez mais distintos”, sendo o grupo, Coletivo à Deriva, o responsável pela
execução do passeio pela cidade, um exemplo vivo dessa mescla de campos
interdisciplinares que promovem a diversidade de ações, visto que é composto
por arquitetos, músicos, advogados, engenheiros, publicitários, filósofos,
artistas, etc, proporciona, assim, olhares múltiplos para as questões
levantadas.
As performances criaram
situações onde as pessoas experimentaram desde um sentimento de contemplação,
como os músicos que apareceram na janela do Museu de Imagem e Som de Cuiabá,
até o choque, ao ver uma performance em frente à Igreja do Rosário e São
Benedito, causado pelo desconforto ao emergir questões, por meio da arte, em
que a sociedade faz “vista-grossa”, como preconceito e o racismo, lançando um
olhar ao negro. Ana Claudia, uma das organizadoras do movimento, apesar do
espanto pela cena pitoresca em frente à igreja, percebeu em meio a sua
narrativa sobre evento que a arte é aquilo que choca também, aquilo que faz
refletir, o que desce em forma de nó pela garganta e se torna difícil digerir,
porém que não seja menos real.
Fernanda, musicista e outra
organizadora do movimento, mora há pouco tempo na capital e conhecia pouco da
história da cidade e do percurso a ser feito, mostrou-se encantada pela
diversidade de ações e da experiência de contato com o outro, o fato do ritmo do
percurso ter permitido que ela lançasse esse olhar minucioso sob um cotidiano
ao qual ela não estava acostumada, e a partir de então, de redescobrir um
espaço, redescobrir pessoas e se redescobrir em outro contexto. Qual não foi
sua surpresa ao descobrir que Everton, um dos organizadores, mora no mesmo
prédio em que ela, fato que passou despercebido por vários encontros, mas que
emergiu no processo de caminhar, em uma conversa despropositada. Relatou que ao
pausar para prestigiar a ação dos violinos em meio a calçada, que tocavam uma
peça de Villa Lobos, em um ponto do percurso, notou que as pessoas, tanto
pedestres quanto motoristas, paravam para ouvir a peça, e dessa forma, que não
era necessário estar em uma sala de concerto para que se escutasse Villa Lobos,
ou Beethoven, ou Bach. A cidade também é palco.
Le Breton traz em seu livro Elogio del Caminar (Elogio ao caminhar) a seguinte pontuação sobre o processo de caminhar, “Caminhar reduz a imensidão do mundo para as proporções do corpo”, e mostra, desta forma, que é preciso ser humilde para se abrir às experiências do mundo e àquilo que não se controla, àquilo que toma o ser humano como métrica. Continua em outro recorte, “O viajante caminha infinitamente pelo espaço, mas sua jornada também é infinita através de seu corpo, que adquire as proporções de um continente cujo conhecimento é sempre provisório”, já que é por meio do corpo e sua locomoção que se experiencia cada sensação, é por meio dele que se ocupa os espaços e os vazios urbanos, assim como, é a mente que processa cada informação recebida.
Ainda que o trajeto tenha
sido escolhido ante a uma peregrinação para saber quais pontos seriam
relevantes para as manifestações artísticas, o que ficou marcado no olhar de
quem participou foi aquilo que não era esperado, o que saiu do controle, ou
aquilo que foi necessário ser escolhido para se olhar, visto a quantidade de
ações acontecendo. O que ficou marcado foi a senhora com sua sombrinha que
pendiam flores, a vivência do que foi esquecido, os comentários variados de
quem estava por perto, a emoção que ficou de cada momento, um lamb que estava no lugar certo, na hora exata, mas que não fora planejado. São esses instantes efêmeros e incontroláveis que fazem do passeio um ato lúdico e, por conseguinte, tornam a experiência memorável na mente de quem participou, nem que seja por todo o trajeto, ou simplesmente, por ter tropeçado no movimento acaminho de algum afazer da vida. São essas pausas promovidas
por meio da arte, por meio do caminhar, que fazem com que nos defrontamos com
as mais variadas perspectivas que temos do mundo e de nós mesmos. Nos permitem
entrar em um campo no qual nossas emoções são novas e antigas, e elas se
mesclam a fim de criar uma nova perspectiva das coisas que não são reparadas usualmente.
Caminhar em grupo, dilui o medo da expressão máxima do ser humano, os
caminhantes são preenchidos com uma força para manifestar seu eu interior, por
meio da arte, por meio de protestos, por meio do contato com outras pessoas.
Quando o sujeito “eu” é
deslocado de sua rotina, e se permite inserir em um contexto no qual ele se
abre a experiência, promove o confronto visual, o olhar o outro, o olhar a si
mesmo, traz a empatia por meio da reflexão, é um movimento que começar, antes
do ato de caminhar em si, internamente dentro de cada um. E ao externar por
meio do grupo, a força e a manifestação se torna mais forte. São esses suspiros
que fazem a cidade respirar, são as pausas meditativas no caminhar, assim como
as plantas que foram entregues ao final da intervenção, não só como um sinal,
mas também, como um apelo de esperança.
Mário Quintana escreveu em
um de seus livros “[...] A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo”, e foi
isso que o Coletivo à Deriva, através do caminhar em grupo, fez e proporcionou
as pessoas, as experiências mais variadas que emergiram diversas sensações
dentro dessa interdisciplinaridade, dentro desse sincretismo cultural que faz
viver a cidade e transforma os espaços. Através de diálogos que só são
possíveis por meio de certas caminhadas.
Referências Bibliográficas
CAMPOS MACHADO, Martha. Arte na cidade: da paisagem às dinâmicas urbanas. 2006. 8 f. Artigo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – SP.
JACQUES, Paola Bergstein. Apologia da deriva. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
LE BRETON, David. Elogio del caminhar. Paris: Siruela, 2015.
QUINTANA, Mário. Espelho Mágico. São Paulo: Globo, 1994.
Comentários
Postar um comentário