Atrações temporárias, agenciando vivências urbanas: Cuiabá 300 sombrinhas

Everton Nazareth Rossete Junior
Aluno Especial do Programa de Doutorado  ECCO 
(evertonjr@gmail.com)


A cidade tem sido regularmente palco de ações e de mudanças, de dinâmicas sociais na vida, no dia a dia. Contudo, desde a transição da modernidade à pós-modernidade e à espetacularização da vida pública, com a sujeição do ser pelo ter, as funções da cidade resumiram-se ao trabalho massacrante, ao morar indigno e a do deslocar-se eterno (TEIXEIRA COELHO, 2001), reforçando a falta de campos para conflitos, excluídos ou sufocados na sociedade do espetáculo, que substitui ainda o ter pelo parecer (DEBORD 1997 [1967]).
Segundo Azevedo:

A cidade enquanto um sistema complexo regulado pela produção, pelas relações formalizadas de trabalho e de família, pelos valores de consumo impulsionados pelas mídias, pelas burocracias que às vezes impedem o fluxo das coisas, cria um universo de sociabilidades obrigatórias, cheia de funções, horários e distribuição de tarefas, de regras inventadas para controlar-nos uns aos outros. Isso fortalece em nós uma subjetividade capitalística. (AZEVEDO, 2013, p.140)

Nesse contexto, como formas de trazer à tona, de se resgatar um caráter público à vida urbana, atrações artísticas como maneira de agenciar ocupações e vivências urbanas se fazem necessárias, dando aos moradores e transeuntes da cidade novos motivos para se reocupar seus espaços.
Agenciamento é um conceito destacado na obra de Deleuze e Guattari (1995), que, simplificadamente falando, podem ser tratados como conexões complexas, que conectam fragmentos, tornando-se fragmentos de outros fragmentos (PORTELA, 2007).
É importante destacar que o conceito de agenciamento pode ser considerado como intrínseco, entrelaçado – até interseccionado – a vários conceitos que também foram abordados por Deleuze e Guattari, como o de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, intersecção, conceito de rizoma, acontecimento, devir, linha de fuga, máquina de guerra, entre outros.
Segundo Puar (2013), o termo adotado em português para se referir ao conceito de agenciamento pode ser considerado uma tradução infeliz do termo francês agencement, que por sua vez significa algo como design, traçado, disposição, esquema, organização, arranjo e relações. Desfortuno que ocorre também com a tradução do termo para o inglês assemblage, que significa assembleia, montagem, reunião, conjunto, ou até mesmo coleção. De qualquer forma, o enfoque do conceito se encontra nas relações, e não no conteúdo.

Há diversas formas de definir o que são agenciamentos, mas estou aqui mais interessada no que os agenciamentos fazem. Para os meus propósitos, os agenciamentos são importantes porque: a) desprivilegiam o corpo humano como uma coisa orgânica discreta. [...] b) os agenciamentos não privilegiam os corpos como humanos, tampouco como alojados em um binário humano/animal. [...] c) a significação é apenas um elemento dentre vários que dão a uma substância tanto significado como função. [...] d) por fim, tem-se que as categorias – raça, gênero, sexualidade – são consideradas eventos, ações e encontros entre corpos, e não meramente entidades e atributos dos sujeitos. Situados ao longo de um “eixo vertical e horizontal”, os agenciamentos passam a existir em processos de desterritorialização e reterritorialização. (PUAR, 2013. p.357-358)

Estas ligações são formadoras de territórios, que podem ser abandonados, alterados, desterritorializados e é exatamente no desaparecimento destes que surgem novas maneiras de territorialização, reterritorializando-as. Tais conexões podem vir em uma composição rígida, estruturada ou fluída, errante e à deriva. Estas conexões criam os territórios (ou as territorializações) ao conectar fragmentos, que, segundo Deluze e Guattari, formam os agenciamentos.
Assim, agenciamentos são conexões, ligações, combinações que unem fragmentos que por sua vez são partes de outras partes. E mesmo sistemas unificados resultam na existência de subsistemas sobrepostos, segmentados em diversos compartimentos, que podem ser utilizados, rearranjados, desterritorializando e reterritorializando diversos agenciamentos.
Caminhar à deriva pode ser visto como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência” (JACQUES, 2003). A deriva é, ainda segundo Jacques (2003), uma técnica urbana situacionista que tenta formar a ideia de construção de situações na prática, através da psicogeografia. Seria uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre, pelo ato de andar sem rumo. A psicogeografia estudava o ambiente urbano, principalmente os espaços públicos, através das derivas, e tentava mapear os variados comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do caminhar na cidade.
Cidade, que tem também como função do seu espaço o ato de mesclar pessoas e diversificar atividades, podendo tornar-se lugar do lúdico, do imprevisível. O uso do espaço traz a consciência do lugar como artístico ou não, sendo este um lugar de trocas. Elementos da cidade (como ruas e praças) são usados como lugar de base artística, teatral, desde a Grécia Antiga, e o uso da cidade pela arte pode trazer um resgate à ocupação, utilização e vivência do espaço público, por uma nova leitura do então já conhecido.
Em intervenções urbanas, onde a arte mostra e questiona a vida através de percursos, de movimento e de ação, estas são um instrumento artístico que usa da realidade do momento como palco para dubiedades e indagações, bem como alterações éticas e simbólicas no espaço e no cidadão. A intervenção artística pode servir como forte instrumento de resgate ao caráter público da vida urbana.
É importante deixar claro que a ideia da arte como forma de explicitar diferenças, desacordos e descontentamentos não constitui a intenção de se instalar um clima agressivo, mas sim como maneira de se opor à conciliação artificial e segregadora que acontece nas cidades (JACQUES, 2009). O consenso e a camuflagem dos conflitos despolitiza, enquanto o desentendimento e a exposição das diferenças existentes se mostra como forma ativa de ação política, de resistência. A arte pode promover o encontro entre personagens de rua do passado e do cotidiano contemporâneo, permitindo ao público reviver a cidade de outra época, sugerindo uma nova relação do transeunte com sua cidade.
Justamente por conta da perda e declínio da vida pública nas cidades, é importante que haja novas maneiras de sociabilidade, por conta da aparente tendência ao desaparecimento do espírito público e do contato real entre cidadãos. Inclusive expondo conflitos urbanos - geralmente ocultos pela cidade-imagem do espetáculo passivo -, que são primordiais na consideração de uma cidade mais democrática. É importante que se consiga saber trabalhar com tais conflitos, assumir a tensão que há entre eles.
Aproveitando-se da mediação, inclusive, de espaços cibernéticos e virtuais, o espaço da cidade se destaca como campo para ações artísticas críticas – aproveitando-se do fato de artistas de modo geral já estarem familiarizados com zonas de tensão -, para propô-las, e estas práticas podem nos auxiliar na reinvenção de um urbanismo que se comprometa com um espaço público mais familiarizado com as diferenças e mais ativo na vida urbana contemporânea.
Numa escala local, pôde-se perceber como uma atividade de deriva, de errância sobre o espaço da cidade, sem pretensão ou objetivo pré-definido a não ser o próprio trajeto em si mesmo, gerou ações, episódios e momentos de encontros, trocas, afetos e de gentilezas urbanas.
O evento Cuiabá 300 Sombrinhas reuniu, no dia 13 de abril de 2019, cerca de 80 pessoas que, a partir da Praça da Mandioca – ponto importante da área central da cidade de Cuiabá – caminharam com sombrinhas (marca identitária do Coletivo A Deriva De Intervenção Urbana) pelo centro da cidade, em um trajeto onde atrações temporárias disputavam o foco dos participantes, de transeuntes e da população.
Aproveitando a data comemorativa dos 300 anos da capital mato-grossense, no dia 8 de abril, o grupo partiu sob o sol escaldante cuiabano – que ajudou a reforçar o caráter reivindicatório das sombrinhas portadas por cada um – e percorreu um trajeto contemplado por jogos teatrais; por garrafas aparentemente deixadas por acaso, mas que continham poesias; por apresentações musicais, ora com tambores e berimbaus nos balcões do MISC (Museu da Imagem e do Som de Cuiabá), ora com violinos tocados por mulheres em meio à Avenida Cel. Escolástico; pela performance teatral “A Carne”, por Everton Britto, na porta da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos; pelo ensaio aberto do Grupo Teatral Cena 11 em uma praça; por dança cigana no semáforo da Avenida Mato Grosso; por músicas populares; pela distribuição de diversas mudas de árvores – retornando à reivindicação por sombras e pelo verde que já foi marca da cidade; entre outros episódios e respingos de vivências urbanas – planejados ou não – que compuseram a ação.
Tanto nas adjacências do trajeto, onde comerciantes, clientes e transeuntes paravam suas atividades cotidianas para contemplar e tentar identificar o que ocorria com o aglomerado de pessoas, como na intersecção de trajetos entre os envolvidos na atração e aqueles que estavam de passagem e cruzavam o percurso, pôde-se perceber  certo envolvimento e um novo olhar, havendo inclusive transeuntes que se desviavam de seus objetivos primários e uniam-se ao grupo na deriva urbana, explorando o que vinha.
Aliando motivos para encontros, com o ato de se permitir caminhar e explorar trajetos da cidade, atrações temporários e as derivas urbanas influenciam na reterritorialização, no ressignificar funções da cidade contemporânea:

As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível pensar que as reivindicações revolucionárias de uma época correspondem à ideia que essa época tem de felicidade. A valorização dos lazeres ao é uma brincadeira. Nós insistimos em que é preciso inventar novos jogos. (DEBORD; FILLON, 1954 apud JACQUES, 2003, p.17)

Mesmo em espaços tido meramente como de passagem, circulação e fluxo contínuo de pessoas, atrativos artísticos são elementos atrativos que podem gerar transformações de vivências, mesmo que temporariamente, às funções primeiras de um espaço urbano, oferecendo formas alternativas de apropriação destes mesmos espaços.

Referências


AZEVEDO, Maria Thereza de Oliveira. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade.. Revista Magistro, v. 08, p. 138-146, 2013

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 [1967].

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995 [1980].

JACQUES, Paola Berenstein. Notas sobre espaço público e imagens da cidade. São Paulo, 10.110, Vitruvius, jul. 2009. Paginação irregular. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.110/41>. Acessado em 23 de abril de 2019.

JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003

PORTELA, Thais de Bhanthumchinda. O urbanismo e o candomblé: sobre cultura e produção do espaço público urbano contemporâneo. 2007. 321p. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2007.

PUAR, Jasbir. “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”: interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. In: Meritum: Revista de Direito da Universidade FUMEC. Belo Horizonte: Universidade FUMEC, v. 8, n. 2, jul. - dez. 2013. (p.343-370)

TEIXEIRA COELHO, José. Moderno Pós Moderno: modos e versões. 4 ed. São Paulo: Iluminuras, 2001.

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