A cidade como palco do caminhar

Thaísa Soares


Quando paramos para nos perguntar sobre a cidade em que moramos? Qual rua, viela, beco nos dá medo, boas lembranças, ou nos oferece uma bela paisagem? Como nela transitamos? veículos automotivos, bicicleta, caminhando? Que observações fazemos enquanto andamos? Observamos? Olhamos sem maiores intenções? Para muitos citadinos caminhar não é uma opção ao acordar e levar sua sombrinha e corpo ao trabalho. A captura de nossos saberes, tempo e corpos nos aliena da dimensão do sensível. Mas, seria possível caminhar na cidade como um ato estético? A cidade de Cuiabá completa 300 anos em 2019, e um grupo de artistas de diversas áreas de atuação propuseram para esta data o passeio “Cuiabá 300 Sombrinhas”.

A proposta deste texto é enfatizar o processo de preparação para esta ação estética, como a escolha do trajeto, convite a artistas da cidade, entre outros aspectos envolvidos na organização prévia ao evento.

A cidade: palco do caminhar como experiência estética
A cidade pode ser pensada a partir de diversas referências e dimensões, tanto que ganha o status de conceito discutido em diversas áreas da ciência. Vasconcelos (1999), aborda as transformações do conceito de Cidade remetendo a autores de fins do século XIX e já do século XX. O autor destaca as discussões em torno das transformações decorrentes da industrialização e formação das cidades, que as compreendem como espaço de aglomerados populacionais, reunião de moradias, pessoas e vias comerciais; um aglomerado de pessoas e objetos. O autor aponta que já nos anos 1930 emergem perspectivas sociológicas sobre a cidade, como lugar de intercâmbios, papéis, representações, cultura, estrutura, poder, linguagem. Ou seja, são consideradas as relações e ações sociais, e a qualidade simbólica da cidade  (VASCONCELOS, 1999). Aqui cabe destacar o olhar de Azevedo (2016) que evidencia a dimensão disciplinar da cidade:
A cidade enquanto um sistema complexo regulado pela produção, pelas relações formalizadas de trabalho e de família, pelos valores de consumo impulsionados pelas mídias, pelas burocracias que às vezes impedem o fluxo das coisas, cria um universo de sociabilidades obrigatórias, cheia de funções, horários e distribuição de tarefas, de regras inventadas para controlar-nos uns aos outros.
A cidade, porém pode ser pensada e vivida de modo a subverter a lógica evidenciada até o momento. Que modos de deslocamentos tornaria isso possível? Seria possível caminhar pela cidade, desobrigados das funções formalizadas? Como seria, então possível andar pela cidade acompanhando seus fluxos, e não os impedindo? Gomes (2017) nos oferece uma pista:

Os deslocamentos elegem e configuram o espaço urbano como meio, local onde se desenrolam as experiências mais diversas, das quais se captam fragmentos. Composta por multiplicidades, a cidade contemporânea é sinônimo de movimentação, mobilidade, como processo de criação artística.

O caminhar pela cidade, em uma perspectiva estética, a torna o próprio campo da ação, não apenas o tema da proposição ( CAMPOS, 2006). E não é de hoje que a cidade é palco de proposições artísticas e o andar um instrumento estético. Esta prática está historicamente vinculada aos movimentos vanguardistas da arte moderna (REY, 2010).
A história das experiências artísticas relacionadas ao andar compreende três momentos, como nos situa Campos (2006). Em um primeiro momento, descreve a autora a partir de suas pesquisas e referência teórica, estão as proposições do movimento dadaísta e do surrealismo no início do século XX. Os artistas experimentaram o andar como Antiarte em incursões visitando lugares remotos, banais, de Paris, andar este com algo de onírico denominado deambulação. Ao dadaísmo segue-se o surrealismo inserindo componentes da psicologia ao considerar o inconsciente da cidade.
O segundo momento remete aos anos 1950 quando das proposições do movimento Internacional Situacionista que assumem o campo político aos atos artísticos lúdicos (CAMPOS, 2006). Os situacionistas, assim chamados, em contrário do sonhar dos surrealistas, propunham atuar no espaço da cidade criando situações que realizassem críticas e pudessem transformar o cotidiano passivo de seus habitantes, e o modo de estruturar suas relações (CAMPOS, 2006; AZEVEDO, 2016).
Campos (2006), apresenta o terceiro momento do andar como intervenção estética remetendo aos anos 1960, da passagem do minimalismo para a Land Art.  Quando artistas plásticos, especificamente escultores, partem da experiência do andar explorando a natureza, primeiro como objeto e depois como experiência.
Rey (2010) afirma que tanto as deambulações, promovidas pelos movimentos surrealista e dadaísta, as derivas do movimento internacional situacionista, como o nomadismo na Land Art  podem ser compreendidos como conceitos operatórios que possibilitaram a artistas realizar atuações no espaço da cidade “enquanto práticas artísticas a fim de promover a experiência estética”(REY, 2010). De modo, segundo a autora, que tais proposições relacionadas a caminhada e ao trajeto em ato estético, ganham o status de experiência tão profunda que opera nos campos simbólico e imaginário, que compõem as subjetividades dos sujeitos envolvidos na ação e afetados por ela ( REY, 2010).
Nesse percurso histórico brevemente rememorado, nota-se que as experiências estéticas ligadas ao caminhar na cidade advieram de caminhos e propostas diferentes, em cada movimento, e que ultrapassam os supostos limites do campo da arte, e como segue apontando Campos (2006):

No limite, observa-se que a história da experiência artística vinculada ao andar, migra da arte para a psicologia, política, arquitetura, escultura, paisagismo, explorando as disciplinas pelo potencial de suas transversalidades.

Cuiabá 300 sombrinhas: bastidores de uma poética urbana.

O Coletivo à deriva, ligado a UFMT através do Grupo de Pesquisa Artes Híbridas Intersecções, contaminações transversalidades, tem realizado intervenções artísticas que ultrapassaram o território da universidade e se estende pela cidade de Cuiabá (AZEVEDO, 2016). Uma das ações iniciais do coletivo, ligadas a um projeto de extensão, foi a proposição de um passeio errático pelo campus universitário, sem trajeto determinado e escapando de suas vias mais movimentadas. Um passeio com sombrinhas.
Azevedo (2016) nos conta que, à época, a ideia de caminhar com sombrinhas foi pensada a partir de uma conversa entre alunos a respeito da experiência de caminhar no campus da universidade precisando desviar do sol buscando sombra de árvore em árvore. Andar por Cuiabá nem sempre é agradável devido ao intenso calor que faz na cidade que quase sempre beira os 40° C. Outro comentário relatado pela autora foi sobre o quanto seria bom se existissem sombras móveis durante o passeio, ideia esta que o coletivo logo associou ao uso das sombrinhas. Desde então, outras ações estéticas foram realizadas, decorrentes desta primeira: Sombras que Passeiam (AZEVEDO, 2016).
Em 2019 Cuiabá completa 300 anos de municipalização formal. A cidade, hoje capital do estado de Mato Grosso, foi formada por bandeirantes que aqui se fixaram pelas jazidas de ouro de aluvião facilmente encontradas e de mais fácil extração. Também por imigrantes portugueses e outras nacionalidades, negros escravizados e  povos indígenas originários vítimas de etnocídio. Atualmente a cidade ultrapassa o número de 600.000 habitantes.
A convite do “Coletivo a deriva”, a turma de uma disciplina do  Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (Mestrado e Doutorado – ECCO) integrou a organização da poética sombras que passeiam; este ano foi definido o tema “Cuiabá 300 sombrinhas” em referência direta ao aniversário  da cidade.
Gomes (2006) discute a cerca de deslocamento, experiência e cidade, e afirma que

O artista contemporâneo faz do deslocamento uma ferramenta de trabalho, é simultaneamente aquele que faz, traça um perfil do seu caminho, abre ou desenha uma via e adapta seu trajeto a um contexto. Ele o constrói em função dos acidentes e dos contratempos do percurso; os eventos se desenrolam e conferem ritmo à sua deambulação.

Portanto, em sala foram realizadas discussões a partir de referenciais teóricos que subsidiaram as propostas de cada participante da turma nesses encontros prévios. A turma era integrada por profissionais de diversas formações, das artes, arquitetura, psicologia, entre outras que com seu olhar trouxeram suas contribuições.
Colegas colaboraram trazendo propostas para a identidade visual do evento com o modelo do cartaz para divulgação que foi, por fim, selecionado pelo grupo. A estratégia de divulgação contou com criação de páginas nas redes sociais e divulgação em outros meios de comunicação. Em grupo, também foram definidas reuniões para convite e participação da classe artística da cidade.  A partir de suas pesquisas, colegas da turma apresentaram ao grupo suas proposições que contavam com jogos teatrais, performances, lambes, entre outras, e, sem falta, as sombrinhas.
A definição do trajeto foi, portanto, pensada pelo grupo de modo a percorrer parte do centro da cidade passando por pontos de referência  histórica nesta região. Ao longo do trajeto intervenções estéticas seriam realizadas e integrantes da turma trouxeram suas proposições para o dia do evento. Como ponto de encontro foi combinada a lendária Praça da Mandioca, uma localidade de residências que se situam no entorno das primeiras casas da fundação da cidade e ao longo dos anos se configurou como ponto da vida noturna. Partindo dali, o tráfego se daria por ruas com casarões históricos, uma praça onde certa vez o mesmo coletivo realizou o plantio de espécies nativas do cerrado, o casarão que hoje abriga o Museu da Imagem e do Som de Cuiabá - MISC, beco do candeeiro, onde a escultura do artista plástico Jonas Corrêa rememora e denuncia o assassinato de três crianças por policiais nos anos 1990. Partindo dali, subida pelas cercanias do morro da luz - o coletivo também já realizou ações nesta que é uma área verde no centro da cidade -  e ilha da banana - onde imóveis foram demolidos, igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que guarda íntima relação com a população escravizada, trecho da avenida prainha que recebe este apelido por ter sido ponto de extração de ouro às beiras do córrego hoje canalizado, ponto inicial da Av. Mato Grosso onde uma obra marcava os 500 anos do Brasil e retorno ao ponto de partida.
O convite a artistas da cidade também reuniu propostas que se articulavam com o trajeto ao reportar elementos históricos, críticas ao modo de ocupação vigente, modos outros de ocupação da cidade e também evidências aos aspectos relacionados à memória da cidade.
Uma tarde foi escolhida, antes da data do evento, para nós percorrermos juntos o trajeto que definimos, melhor configurar a rota, conhecer a região já que vários de nós mora há pouco tempo na cidade, circulam principalmente no entorno do campus da universidade, ou mora em outro município e vem para cursar a disciplina, e pensar juntos outras necessidades para a organização prévia do “Cuiabá 300 sombrinhas”. E, certamente, fomos de sombrinhas.
Este foi um gostoso passeio. Durante o trajeto foram feitas gravações de teasers para divulgação; em diferentes pontos alguns de nós dizia algumas palavras de convite para o evento. De acordo com o plano de divulgação, cada dia um desses teasers foram lançados nas redes sociais. Ouvimos histórias de nossa professora que compõe o “Coletivo a deriva” falando de outras experiências estéticas já realizadas em pontos por onde passávamos. Conversas entre os colegas da sala, nas quais ideias em ebulição anunciavam propostas de intervenções, tocamos em temáticas importantes como, por exemplo, críticas a violências contra as mulheres no espaço da cidade e a contaminação por agrotóxicos. Ao final, um lanche em uma padaria antiga provando o típico bolo de arroz.
É importante frisar que nem todos os detalhes de cada proposta foram apresentados de antemão, o que mais nos atraía do que preocupava. Dado que experiências estéticas relacionadas ao caminhar em ligação com o território e sua história admite a imprevisibilidade dos acontecimentos

[...] o trabalho adquire relações com os processos vitais da cidade, cujas variáveis escapam ao controle e previsão das intervenções, que passam a assumir alto grau experimental por interagir mais com os processos dinâmicos e jogos dos atores do espaço urbano,e menos com a paisagem isoladamente. (CAMPOS, 2006)

Caminhando para as considerações finais


A experiência de pensar o percurso desta ação estética aberta às interferências e ao imprevisível, abrir mão do controle de nossos corpos, tempo e posição hierarquizada de saberes ao preparar o “Cuiabá 300 sombrinhas”, remeteu ao que Campos (2006) afirma sobre o andar como intervenção ter “um caráter distinto de planejamento e descoberta que privilegia a experiência do percurso buscando redescobrir uma sensação tátil frente ao espaço.”.
Fazer frestas, agenciar devires admitindo a efemeridade e a potência do caminhar em sua dimensão estética, que se estende aos âmbitos político e social, nos incita a reflexões e problematizações sobre a cidade.“Uma forma latente de experiência e registro em que cada uma das intervenções são fragmentos de uma história citadina que está em constante mapeamento e ordenação, assumindo, tal qual aos seus passantes, a condicionante do efêmero e do temporário.”(GOMES, 2017).
E sua próxima caminhada pela cidade, como será?

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Maria Thereza Oliveira. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Revista Magistro, vol. 8, n. 2, p.138-146, 2013.

CAMPOS, Martha Machado. Arte na cidade: da paisagem às dinâmicas urbanas. Arte na Cidade. 2006.

GOMES, P. Por uma estética radicante: deslocamento, experiência e cidade. In: Estudos Avançados, 2017.

REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento virtual. Revista Porto Arte, Porto Alegre, v. 17, n. 29, p.107-121, nov. 2010.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. 1999. A Cidade, o Urbano o Lugar, in, GEOUSP, nº 6, pp.11-15.



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